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11 de nov. de 2011

Nota acerca dos últimos acontecimentos na USP


Ficção


“Tudo quanto se diz no teatro ou no romance tem a sua significação e conseqüência, o seu lugar, o seu propósito.

Na vida, porém, se diz cada coisa, sai-se com cada uma, seu moço... e tudo fica por isso mesmo.”


Mário Quintana


Mário Quintana ao inverter a lógica do senso-comum sobre o que pensamos da ficção e “vida real”, surpreende justamente pela possibilidade desta interpretação. Curiosamente é na arte que encontramos acolhimento para os mistérios do mundo, para nossas estranhezas, para o que parece impossível... Mas é no cotidiano do dia-a-dia que experimentamos a falta de sentido de curiosas demandas... Tanto na ficção - e para nós especialmente no cinema - quanto na realidade, nem sempre as coisas fazem sentido ...


Se a ficção indaga mais do que apresenta respostas, porque não nos causa tanto estranhamento? A crônica da morte anunciada por Gabriel Garcia Márquez prossegue e mesmo sabendo-se o final desde o início, sopra por vezes uma esperança ou ainda uma incerteza sobre o destino do herói. Por que continuamos lendo? O universo da arte torna tolerável a convivência com o que não sabemos, com a curiosidade de um outro mundo, de uma outra realidade. Em nosso cotidiano, por que estudamos, por que acreditamos na universidade, porque lutamos por algumas causas? Talvez sejamos habitados pela mesma incerteza quanto aos destinos da história e as possibilidades de um outro mundo...


Carlos Fuentes, em um texto intitulado “O elogio da incerteza” defende o privilégio da literatura em ser equívoca contra o dogmatismo da religião, a ideologia política e a lógica racional. “A qualidade da dúvida em um romance talvez seja uma forma de nos dizer que, como a autoria (e portanto a autoridade) é incerta e suscetível de muitas explicações, o mesmo acontece com o mundo. A realidade não é fixa, é mutável” (2005, p.3).


Desse modo o sujeito histórico não é necessariamente aquele que assume uma autoria, mas aquele que autoriza uma nova atualidade para a sua história. Aquele que se deixa levar pelo estranhamento, mas especialmente aquele que se apresenta para o diálogo, mesmo sem saber exatamente como irá se desenrolar.


Sobre a estranheza da realidade, a questão é que ela existe, se deixa perceber tanto na ficção quanto, evidentemente, na história. Adam Schaff (História e verdade, 1983) esforça-se em mostrar, por meio dos estudos sobre a Revolução Francesa, a diversidade de leituras possíveis. “A medida que os historiadores divergem, não têm a mesma visão do processo histórico, fornecem imagens diferentes, por vezes contraditórias, de um único acontecimento” (p.10). Como diria Merleau-Ponty (A crise do entendimento, 1980), é importante retirar da experiência histórica todos os ensinamentos que comporta, e aqui não se trata de fatos. Curioso imaginar a possibilidade de um discurso soberano, absoluto, consensual... o fim da história... A própria pretensão de tal discurso já indica seu caráter ficcional. Assim, reconhecer o campo das possibilidades é reconhecer-nos nesse horizonte histórico, como potência de ação em direção aos espaços que se anunciam.


O que nos indicam os recentes acontecimentos no campus da USP? Desconforto, questionamentos, estranhamento... sobretudo a revelação de uma necessidade, de um espaço, indicam a reapresentação de um passado que não se deixa esquecer. Esses acontecimentos indicam que “algo há” e que ainda existe o desejo de uma outra realidade... Infelizmente não podemos esperar de policiais, tampouco de ministros, governadores e afins “aulas de democracia e respeito ao dinheiro e ao patrimônio público”, tampouco exemplos de cidadania... mesmo porque mais importante do que aulas, ou fórmulas, são as experiências... Seria uma heresia comparar o senso comum e a pobreza de algumas mídias e do jornalismo inconsequente com a riqueza da arte, da ficção da realidade... Resta-nos, portanto a busca. A que serve enfim uma universidade? Exercício de diálogo... de repensar formas de relações... de reinventar tradições... exercício de ser outro... Movimento, incerto como a própria vida, tentativa de soluções diferentes daquelas que a realidade sem sentido ora apresenta. Na vida “se diz cada coisa, sai-se com cada uma, seu moço...”, mas nem tudo precisa ficar por isso mesmo.

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